“Há tantos burros mandando em homens de inteligência, que, às vezes, fico pensando que a burrice é uma ciência."
(Rui Barbosa)
- Por J.W.Granjeiro - Peço licença aos leitores desta coluna, para, mais uma vez, fugir ao tema central dos nossos artigos, que são os concursos públicos, para tratar de assunto de alta relevância para a administração pública do nosso país, e que se tornou motivo de um verdadeiro escândalo nacional. Falo da MP 527, cujos detalhes são realmente escabrosos e agridem o bom senso, a ética, a isonomia e a moralidade que devem prevalecer na administração pública. Ela institui nas licitações justamente o oposto e joga no esgoto normas constitucionais em vigor no país desde a promulgação da Constituição de 1988, além da regulamentação das licitações constante da Lei 8.666.
O mais grave, no caso, é que tal iniciativa tem origem no governo federal, que, em lugar de zelar pelo fiel cumprimento do princípio constitucional da moralidade nos negócios públicos, investe contra ele com argumentos indefensáveis. È triste, para dizer o mínimo, ver e ouvir a própria presidente Dilma Russef defender essa barbaridade jurídica. A presidente chegou a dizer que o sigilo sobre a contratação de obras para Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, aprovado pela Câmara, foi 'mal interpretado' e o que está sendo chamado de sigilo seria apenas uma forma de reduzir o preço das obras (sic).
A MP foi aprovada por 272 votos a favor e 76 contra, portanto, com votação maciça da bancada do governo a favor do projeto de lei de conversão da medida provisória 527/11, que prevê a flexibilização da lei 8.666 (Lei das Licitações) para obras da Copa 2014 e da Olimpíada 2016, com a criação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) para esses eventos. Alterar a Lei 8.666 por meio deste projeto de lei de conversão de uma MP não teria nada de ilegal, se não fosse o conteúdo claramente inconstitucional de vários dispositivos ali contidos.
O Artigo 6 da MP 527 prevê que o preço não seja divulgado no edital da licitação e que tenha "caráter sigiloso". Pode ser divulgado "estritamente" aos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União. Os defensores da medida afirmam que esse artigo ele pode evitar o superfaturamento e a formação de cartel, o que é uma grosseira bobagem. E o Artigo 15 prevê que o sigilo ocorra em toda a obra, quando for considerada questão de segurança nacional. Imaginem: gastos com a construção de estádios de futebol serem considerados assuntos de segurança nacional, ao bel prazer dos poderosos do momento! É abrir a porta para a institucionalização da roubalheira do dinheiro público que, eventualmente, venha a ser investido nessa e em outras obras.
A questão do sigilo nas licitações atenta contra o caput do artigo 37 da Constituição Federal, que determina: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) – seguem-se os demais dispositivos.
Portanto, a publicidade é uma norma incontornável do texto constitucional e a lei aprovada pela Câmara dos Deputados viola frontalmente esse princípio. Argumentos em contrário são meros subterfúgios para driblar esse princípio.
Como afirmou o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o atraso nas obras do Mundial não pode ser justificativa para “contornar as exigências legais”. Para ele, “é uma coisa escandalosamente absurda”, pois não pode haver despesa pública protegida por sigilo e "a sociedade não pode ser privada do acesso a informações relacionadas à despesa pública". E mais: “a simplificação é de tal monta que acaba inviabilizando o procedimento licitatório, que é uma exigência. Um evento grande impõe que os cuidados sejam redobrados. Exatamente por ser um chamado megaevento, as despesas também são megadespesas e, por isso, impõe que os cuidados sejam ainda maiores”, disse o procurador.
Gurgel tocou num dos pontos cruciais das despesas da Copa, ou seja, quanto maior o evento, mais cuidados devem ser tomados, e não o contrário. E o RDC surge num momento em que os gastos com a Copa estão cercados de suspeitas de superfaturamento, principalmente em relação aos estádios-sede, e escândalos de suborno envolvem as entidades responsáveis pelo evento e seus dirigentes, no caso, a Fifa, a CBF e o COL (Comitê Organizador Local), em relação à escolha de sedes para outros Mundiais e Olimpíadas.
E o procurador da República não está sozinho em sua condenação ao RDC: No último dia 12 de maio, o Ministério Público Federal (MPF) divulgou nota técnica atacando cinco pontos da medida provisória aprovada pela Câmara dos Deputados, considerando que o RDC deixaria espaço ao governo para fazer escolhas subjetivas sobre obras e contratações, sem a necessidade de justificá-las. Para o MPF, a cláusula é “intoleravelmente aberta”, o que viola princípios da Constituição, como o da moralidade administrativa.
Mas isso ainda não é tudo, infelizmente. O RDC traz embutida outra aberração jurídica de suma gravidade: O Artigo 39 da Medida Provisória 527 prevê que alterações nos contratos do RDC poderão ser feitas em decorrência de "normas ou exigências homologadas pelo COI (Comitê Olímpico Internacional) ou pela Fifa". E, neste caso, "não serão aplicados" os limites de gastos previstos no parágrafo 1 do Artigo 65 da Lei 8.666, de até 25% do valor inicial atualizado do contrato e de 50% no caso de reforma de edifício ou de equipamento.
Mas se pensam que o show de horrores da MP 527 termina por aí, lamentavelmente. não: o Regime Diferenciado de Contratações Públicas ainda permite a ampliação quase infinita do número, do tamanho e do custo de obras sob as regras especiais de licitação, de acordo com o jornal O Globo, com a inclusão de novas obras na Matriz de Responsabilidades, que relaciona os compromisso do governo com a Copa e serão regidas pelo RDC, conforme a conveniência do poder executivo.
E uma emenda que ainda será votada pela Câmara: propõe retirar do texto a limitação do RDC às obras da Copa e dos Jogos Olímpicos, estendendo-o o a qualquer outra obra. Na prática, segundo o Globo, o RDC já foi ampliado, com a aprovação de emenda que inclui em sua órbita capitais de estados a até 350 km de cidades-sede dos eventos, o que beneficia beneficiará, por exemplo, cidades como Goiânia e Florianópolis.
Diante de tudo isso, ao terminar este artigo,
me vem à mente outro pensamento de Rui Barbosa:
“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.
J.W.Granjeiro é diretor-presidente do grupo Gran Cursos