- Do Correio Braziliense - Serviço clandestino em Taguatinga e em Ceilândia operam sem nenhuma fiscalização
Centenas de pessoas se arriscam diariamente em viagens clandestinas para deixar o Distrito Federal. As excursões são oferecidas por empresas autorizadas a funcionar apenas como estabelecimentos de turismo, limitadas à venda de pacotes. Pelas regras da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), quem faz o pedido para realizar esse tipo de serviço fica impedido de negociar bilhetes avulsos. Mas a prática se tornou comum na capital do país. A partir de pelo menos quatro pontos de Taguatinga e de Ceilândia saem veículos lotados de passageiros, cujo objetivo vai além do passeio.
Ao lado do Cemitério de Taguatinga, tais irregularidades ocorrem a qualquer hora do dia. Quem recorre à ilegalidade para chegar ao seu destino leva em conta somente o preço, mas não avalia os perigos. Desde o início do ano, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) flagrou em blitzes cerca de 120 ônibus de turismo com algum tipo de irregularidade. A maioria tentar burlar o motivo da viagem. Pacote de turismo tem de prever ida e volta à origem. Mas sacoleiros e pessoas de mudança para outras unidades da Federação recorrem ao serviço não convencional para, por exemplo, escapar das taxas por excesso de bagagem.
Normalmente, quem organiza esquemas semelhantes não encaminha a lista de passageiros para aprovação da ANTT, procedimento considerado obrigatório. Assim, são frequentes embarques em veículos faltando apenas 10 minutos para a partida, como o Correio constatou na última sexta-feira, perto do Cemitério de Taguatinga. Uma funcionária da empresa Kaká Turismo, que se identificou como Vanessa sem saber que falava com um jornalista, disse que a entrada em um ônibus com destino ao Maranhão poderia ser feita com a apresentação da Carteira de Identidade. A viagem a São Luís estava prevista para as 10h. A conversa com a reportagem ocorreu às 9h50. “Vai sair agora e ainda tem vaga. É só mostrar a identidade e trazer a bagagem”, afirmou.
Como o transporte é pirata, os passageiros não têm direito ao Seguro de Responsabilidade Civil na hipótese de acidente com mortos e feridos. A cobertura mínima é de R$ 2.084 para o custeio com tratamento médico. Os romeiros de Santo Antônio do Descoberto (GO), vítimas do acidente registrado na última terça-feira na Rodovia Floriano Peixoto Rodrigues Pinheiro, em São Paulo, não se enquadram nesse problema. A empresa El Shadai cometeu várias irregularidades, mas não fazia o transporte pirata. O motorista estava com a Carteira Nacional de Habilitação vencida; a empresa não tinha autorização de viagem da ANTT; e foram ignoradas ordens de agentes da PRF para retornar à cidade de origem. Dez romeiros morreram no acidente (leia Entenda o caso).
Perigo
Por telefone, a reportagem também entrou em contato com a Globo Turismo. A atendente informou que até sem identificação o interessado poderia ir para São Paulo. “Se você tiver perdido a identidade, dá para viajar, mas, se a fiscalização pedir para ver o documento, você vai ter que descer no meio da estrada”, alertou. A confirmação da má prestação do serviço ocorreu no momento em que a reportagem questionou se o motorista passaria por Campinas (SP). “Ele não entra na cidade, mas te deixa na rodovia e você dá um jeito de ir para lá.”
Acidentes com vítimas fatais são comuns entre ônibus piratas.
Alguns usuários do transporte pirata interestadual admitem saber que rodam em um veículo sem segurança, mas ressaltam que a economia e a disponibilidade de horários contribuem para a escolha. “Eu pago R$ 120 para ir ao Maranhão. Se fosse na Rodoviária, eu ia gastar uns 30% a mais e ainda não teria a certeza de viajar no dia que eu gostaria”, contou um homem, que preferiu não se identificar. Outro, que também não quis revelar o nome, voltava com toda a mudança para Peritó (MA). “Se eu fosse pagar um ônibus convencional, gastaria um absurdo pelo excesso de peso. Aqui, eles não cobram isso. Nem balança tem para saber quantos quilos você está levando.”
Outro ponto tradicional de saída e de chegada do serviço clandestino fica no Posto Neném, no centro de Taguatinga. Na EQNM 21/23, em Ceilândia Sul, a venda ilegal de passagens ocorre no bar Tonhão. Em frente aos dois estabelecimentos, estacionam vários ônibus à espera de passageiros. Até na internet os piratas se popularizaram. Em sites de relacionamento, é possível encontrar dicas de preços e de horários, além de informar nomes de empresas responsáveis pelo serviço ilegal. Mas há quem alerte sobre os perigos. “Não coloque sua vida em risco. Junte um pouco mais de dinheiro e faça uma viagem mais segura, com tudo certinho”, publicou uma jovem no site. Procuradas, as duas empresas não retornaram as ligações.
Entenda o caso
Tragédia anunciada
O ônibus da empresa El Shadai saiu de Santo Antônio do Descoberto (GO) com destino a Aparecida (SP) no último dia 11. Na volta, na última terça-feira, o motorista Isaque Correa de Almeida perdeu o controle do veículo e tombou na altura de Pindamonhangaba, a 156 quilômetros de São Paulo. Dos 48 passageiros, 10 morreram, sendo uma criança de três anos. A El Shadai não tinha autorização da ANTT para fazer a viagem. Isaque dirigia com a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) vencida.
Na ida, em Valparaíso (GO), ele foi parado por uma blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Os agentes exigiram que ele retornasse para a cidade goiana, mas o condutor teria descumprido a ordem e seguido por outro caminho. Pela falta de autorização da ANTT, a PRF multou a empresa em R$ 4.913,20 e o motorista foi multado em R$ 191,54 por dirigir com a carteira vencida há mais de 30 dias.
Fiscalização deficiente
O supervisor de Fiscalização da ANTT, Jesiel Marcelino da Silva, informa que operações especiais são realizadas no DF para flagrar ônibus cadastrados na empresa em atuação irregular. Mas alega que o órgão não dispõe de meios legais para aplicar punições. Nesse caso, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar são acionadas para reprimir os infratores. Jesiel ressalta que as empresas de turismo voltadas para o transporte de linha convencional acabam multadas em até R$ 4,9 mil, além de terem o veículo retido. “Para o passageiro não sair prejudicado, nós acionamos um ônibus que tenha autorização para fazer a viagem de linha e a empresa infratora paga as custas. As pessoas têm de lembrar que quase sempre o barato sai caro”, alerta.
O supervisor da ANTT também ressaltou que esse tipo de serviço não recebe nenhuma assistência em caso de quebra do veículo ou de acidente. “Teve uma vez que passageiros de um ônibus que fazia transporte irregular passaram quase dois dias num canavial depois que o veículo quebrou. Se fosse uma companhia regular, eles seriam encaminhados a um hotel, receberiam alimentação e todos os cuidados necessários”, explica.
Cuidados
O presidente do Instituto Brasileiro de Estudo das Relações de Consumo (Ibedec), Geraldo Tardim, orienta os consumidores a exigir da empresa todas as garantias de que os serviços descritos em contrato serão cumpridos. Uma das dicas para saber se o estabelecimento é regular é pedir aos responsáveis o CNPJ da empresa e consultar o site www.antt.gov.br. “O passageiro tem de se cercar de todos os cuidados para não ter dor de cabeça durante a viagem. Muitas empresas não deixam claro, por exemplo, os valores de alguns serviços e, às vezes, apresentam o contrato com outro idioma, o que é proibido. Casos como esses devem ser denunciados aos órgãos de defesa do consumidor e à ANTT”, salientou.
Apesar do baixo efetivo, a PRF tenta flagrar veículos disfarçados de turismo em circulação nas rodovias brasileiras. O chefe da Comunicação Social da PRF, inspetor Daniel Bonfim, disse que muitas firmas flagradas cometendo infrações continuam em operação amparadas por liminares. Ele explica que, principalmente no fim do ano, aumenta o número de veículos em viagens piratas. “De acordo com a declaração dos passageiros e pelo tipo de bagagem conseguimos descobrir se realmente se trata ou não de um grupo de turistas. Aplicamos multas segundo o Código de Trânsito Brasileiro, mas, mesmo assim, eles continuam atuando, porque têm demanda de passageiros.”