O banco alemão KfW envolve Valter Cardeal, homem de confiança de Dilma Rousseff, na história de uma fraude de € 157 milhões
A Revista Época desta semana traz uma denúncia que envolve a gestão da então ministra Dilma Roussef à frente de Minas e Energia.
OBRA INACABADA
Valter Cardeal e a Usina de Biomassa em Inácio Martins, Paraná, invadida pelo mato. Parte do dinheiro alemão sumiu.
O engenheiro gaúcho Valter Luiz Cardeal de Souza é o diretor de Planejamento e Engenharia da estatal Eletrobras, maior empresa de energia elétrica no país. Pragmático e influente, tem fama de possuir mais poder do que o cargo sugere. Empresários do setor, executivos de grandes empresas e a elite da burocracia tratam Cardeal como o “homem da Dilma”, referência às estreitas ligações políticas, profissionais e pessoais entre ele e a candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff. Cardeal entrou para o setor público em 1971, quando se tornou funcionário da Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul (CEEE). Cardeal e Dilma se aproximaram durante o governo de Alceu Collares (1991-1995), quando ela era secretária de Energia do Rio Grande do Sul e ele diretor da CEEE. Desde então, ele se tornou homem de confiança de Dilma no setor elétrico. Os dois pertenceram ao PDT e, em 2001, ele a acompanhou na mudança para o PT. Dois anos depois, Cardeal chegou à Eletrobras por indicação de Dilma, ministra de Minas e Energia no início do governo Lula. Em 2007, ele ocupou interinamente a presidência da estatal, uma tentativa frustrada de Dilma para manter o controle sobre a empresa, que acabou nas mãos do PMDB. Com 59 anos, alto e falante, Cardeal costuma ser poupado nos rompantes de mau humor de Dilma nas reuniões com subalternos.Em 2007, Cardeal foi denunciado pelo Ministério Público Federal por gestão fraudulenta e desvio de recursos com base nas descobertas da Operação Navalha, da Polícia Federal, que investigou irregularidades em obras públicas. Sob a proteção de Dilma, manteve-se apesar disso firme no governo federal. Foi presidente do Conselho de Administração de Furnas e da Eletronorte, outras duas estatais federais. Como diretor de Planejamento e Engenharia da Eletrobras, é responsável por projetos bilionários do sistema Eletrobras, como o programa de incentivo ao uso de energias alternativas, conhecido como Proinfa. Cardeal ainda acumula o cargo de presidente do Conselho de Administração da Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTEE), uma subsidiária da Eletrobras. Por causa desse segundo emprego, o nome de Cardeal aparece em um dos maiores escândalos da área de energia no governo Lula.
ÉPOCA teve acesso a uma ação de indenização por danos materiais e morais apresentada contra a CGTEE em agosto deste ano na 10ª Vara Cível de Porto Alegre pelo Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW) – um banco de fomento controlado pelo governo da Alemanha, uma espécie de BNDES germânico que foi criado na época da reconstrução do país depois da Segunda Guerra Mundial. Nessa ação, o KfW afirma ter evidências de que Cardeal teria conhecimento, desde o início, da emissão de garantias ilegais e fraudulentas, para que duas empresas privadas brasileiras obtivessem um empréstimo internacional no valor de e 157 milhões destinados à construção de sete usinas de biomassa de geração de energia no Rio Grande do Sul e no Paraná. Para o banco que empresta o dinheiro, essas garantias forneceriam um atestado de que, se o devedor não pagasse, alguém – no caso a CGTEE – funcionaria como fiador e arcaria com essa responsabilidade. Só que essas garantias, dadas em nome da CGTEE, violavam a Lei de Responsabilidade Fiscal, no artigo que proíbe empresas do governo de dar aval internacional a empresas privadas. Esse artigo determina que elas não podem funcionar como fiadoras nesse tipo de empréstimo. Ele foi incluído na lei para evitar o descontrole no endividamento das empresas estatais em moeda estrangeira e para impedir que o patrimônio do Estado seja colocado em risco. Todo gestor público experiente deve saber dessa proibição.
Cardeal foi denunciado em 2007 pelo Ministério Público por desvio de recursos da EletrobrásNa ação judicial, o banco alemão faz uma afirmação ainda mais comprometedora. De acordo com o KfW, a então ministra, Dilma Rousseff, tomou conhecimento do negócio em 30 de janeiro de 2006, durante um seminário, em Frankfurt, sobre investimentos em infraestrutura e logística no Brasil. “Até mesmo alguns políticos conheciam os fatos, como a então ministra, Dilma Rousseff”, afirma a ação. Ao processo, os advogados do KfW anexaram documentos do seminário. Dilma, na época ministra da Casa Civil, foi inscrita como chefe da equipe da Presidência do Brasil (leia abaixo a reprodução do programa do seminário). As garantias da operação, de acordo com o banco, foram discutidas num dos fóruns do seminário de que ela participou. Na apresentação do negócio a Dilma, o KfW diz ter informado que a operação ainda tinha o desafio de obter as garantias. Em seguida, apresentou uma saída: “Solução: emissão de garantia de pagamento por uma subsidiária, com patrimônio suficiente, da empresa governamental de energia Eletrobras”. Segundo o KfW, a subsidiária da Eletrobras já teria sido aceita pela agência oficial alemã de crédito de exportação. Dois dias depois do seminário com a presença de Dilma, o KfW, de acordo com a sindicância da CGTEE, registrou a obtenção das garantias aos financiamentos. Em nota enviada a ÉPOCA, o banco alemão afirma que recebeu garantias da CGTEE em março e agosto de 2005 para empréstimos para a empresa Winimport construir as usinas de biomassa.
A assessoria de Dilma confirmou que ela participou do seminário em Frankfurt, mas negou que tenha visto a apresentação sobre o negócio. Em nota enviada a ÉPOCA, a assessoria de Dilma afirma: “Tratou-se de um evento, como muitos feitos habitualmente pelo governo Lula em vários países, para exposição dos cenários econômico e social do Brasil a empresários e dirigentes alemães. A ex-ministra falou no painel ‘Aspectos Jurídico-Regulatórios e Programas Governamentais para Infraestrutura e PPPs’. Não houve painel sobre ‘financiamento de projetos de usinas de biomassas’. Na parte da tarde, (ela) se reuniu com representantes de empresas alemãs do setor naval e siderúrgico. À noite, embarcou para o Brasil”.
Em usinas de biomassa, podem ser usados resíduos de cana, madeira, vegetais e até lixo que, jogados em imensas caldeiras, viram matéria-prima para a geração de energia. Das sete usinas previstas – três da Winimport e quatro da Hamburgo –, cinco nunca saíram do papel. As outras duas constam dos registros da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o órgão regulador do mercado, como de propriedade da Winimport. Uma, no município paranaense de Ignácio Martins, ainda estaria em obras. A outra, em Imbituva, no Paraná, já estaria gerando energia. Visitas da reportagem de ÉPOCA às duas unidades, no entanto, revelaram situações diferentes. O projeto de Ignácio Martins está inconcluso. O mato tomou conta do canteiro de obras. A Aneel já multou a Winimport por atraso no cronograma dessa usina, cuja autorização data de novembro de 2004. A usina de Imbituva, um município de 28 mil habitantes, tem aparência de abandono, com apenas uma guarita de vigilância. A obra foi aprovada pela Eletrobras dentro do Proinfa, o programa destinado a incentivar o uso de energia alternativa no país. O dinheiro que fora emprestado para a construção das usinas teve outro destino.
O KfW descobriu a fraude em 2007, quando a Winimport deixou de quitar parte do financiamento. Na ocasião, o banco alemão procurou a CGTEE para cobrar as garantias, nos termos previstos na documentação dos empréstimos. Foi informado de que a estatal não tinha conhecimento desse aval. Isso motivou uma sindicância pela CGTEE e o fato foi comunicado à Polícia Federal. Naquele ano, uma investigação da PF, denominada Operação Curto-Circuito, constatou a fraude nas garantias, o sumiço do dinheiro e o envolvimento de nove pessoas. Elas foram presas depois de investigações em que a PF, com autorização judicial, obteve acesso a sigilos bancário, fiscal e telefônico e realizou buscas e apreensões. Em 2007, a PF enviou o relatório final da apuração à Justiça Federal no Rio Grande do Sul. Atualmente, todos respondem a processo, acusados dos crimes de formação de quadrilha para a prática de delitos contra a administração pública, corrupção passiva e ativa e estelionato.