Montadora utilizou por 12 anos mão de obra de entidade beneficente de fachada; justiça determina extinção e arrecadação do patrimônio de associação por fraude
- Por Jorge Wamburg -O juiz Marcus Menezes Barberino Mendes, da Vara do Trabalho de Tatuí (SP), condenou a montadora
Ford Motor Company do Brasil Ltda. e a entidade
Avape (Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência) ao pagamento de R$ 400 milhões por danos morais causados à sociedade, sendo que metade deste montante equivale à pena por prática de dumping social (burlar direitos trabalhistas para reduzir custos de produção e, assim, obter vantagens econômicas sobre a concorrência). Os efeitos da sentença têm abrangência nacional, ou seja, são válidos em todas as unidades da Ford no país.
Ambas foram processadas pelo Ministério Público do Trabalho em Sorocaba por terceirização ilícita no ano de 2011.
Nos últimos 12 anos, a Ford utilizou em seu campo de provas, em Tatuí, a mão de obra fornecida pela Avape, uma entidade beneficente de fachada, para terceirizar atividades que são essenciais para o sucesso do negócio da montadora (também chamadas de “atividades-fim”), tais como atividades de rodagem (piloto de teste), mecânica, ferramentaria e montagem de protótipos, dentre outras.O juízo também determinou a cassação do registro da Avape como entidade beneficente e da isenção fiscal retroativamente ao ano de 2000 e a sua completa extinção. A decisão obriga a arrecadação de todo o seu patrimônio móvel e imóvel e a destinação para entidade beneficente que detenha “honorabilidade e desenvolva atividade de atenção e promoção de pessoas com deficiência, inclusive as unidades APAE”.
“A gravidade do comportamento da 2ª Requerida (Avape), inclusive por sua relação com grandes corporações compromete o próprio sistema de altruísmo institucional que o Estado nacional patrocina. Basta pensar nas dificuldades e no alcance de instituições legítimas como a APAE, e no risco para essas entidades que a difusão e comportamento da 2ª Requerida trazem. Além de absorver e neutralizar o altruísmo interessado dos seus supostos “contribuintes” que são seus compradores de gente, põe em risco a própria confiabilidade no sistema de isenção e de doações de toda a comunidade”, afirma o magistrado.
A extinção e a arrecadação do patrimônio da Avape devem ocorrer após o transito em julgado do processo (quando não há mais possibilidade de recurso). Até lá, fica declarada a indisponibilidade do patrimônio da entidade, devendo seus gestores apresentar uma lista de bens móveis, imóveis e os recursos financeiros existentes no prazo de 60 dias após a sua notificação.
Obrigações da Ford A sentença confirma a liminar que foi concedida ao MPT no ano passado, na qual a Ford deve assumir a contratação direta do pessoal para exercer as atividades listadas pelo Ministério Público, com assinatura em carteira de trabalho. São elas: montador de protótipo, técnico mecânico, motorista de teste, técnico especialista, preparador de carga, técnico analista de dados, técnico ferramenteiro, coordenador de rodagem, auxiliar administrativo, borracheiro, lavador de autos, frentista, técnico de processos, analista de custos, assistente de vendas, engenheiro de processos, analista financeiro e coordenador de comunicação.
A determinação é de que a Ford contrate, em 60 dias, todos os empregados da Avape que prestavam serviços em sua unidade industrial em Tatuí (SP), num total de 280 pessoas, que haviam deixado de exercer suas funções na planta em decorrência da liminar concedida. A multa pelo descumprimento é de R$ 500 mil por dia.
“Enquanto mantiver um campo de provas e testes entre suas atividades, a 1ª Requerida (Ford) fica proibida de terceirizar suas atividades finalísticas dessa sua unidade”, determina Barberino.
A Ford também terá que veicular nos veículos de comunicação inserções que tratem da condenação, explicando que a situação incitava a violação à dignidade humana, às regras de proteção do trabalho, à livre concorrência e ao fair trade.
Atividade-fimNo decorrer de um inquérito civil, o procurador Bruno Augusto Ament realizou diligência de inspeção no campo de provas da Ford em Tatuí, oportunidade na qual constatou a intermediação de mão de obra na atividade-fim da empresa.
A jurisprudência predominante, contida no enunciado da súmula 331 do TST (Tribunal Superior do Trabalho), parte da premissa de que a intermediação de mão de obra é proibida, e a terceirização é permitida apenas nos casos em que o serviço necessita de especialização.
Na sentença, o juiz foi enfático: “O exame atento do conjunto probatório dos autos indica que a relação Avape-Ford não diz respeito à terceirização de serviços, mas cuida do simples fornecimento de mão de obra (merchandising) através da intermediação das empresas”.
Dumping socialA decisão vai ao encontro da tese de que o modus operandi utilizado pela Ford para terceirizar funções essenciais ao negócio geram o que se chama de “dumping social”, uma concorrência desleal gerada pelo descumprimento de direitos trabalhistas e da dignidade do trabalhador.
Em casos como este, a empresa repassa a outra empresa a responsabilidade por uma etapa do processo produtivo e, como consequência, a responsabilidade pelas obrigações trabalhistas e previdenciárias.
“O dumping social tem um agravante ético, mesmo para os mais pragmáticos que dão de ombros para a relevância dos direitos fundamentais de natureza socioeconômica: a ação oportunista do concorrente desleal deita por terra toda a estratégia de concentração internacional do Estado brasileiro em inserir o setor automotivo na disputa pelos novos mercados de automóveis, criando álibi para a instituição de barreiras tarifárias e não tarifárias pelos Estados das economias centrais do mundo capitalista”.
Destinação das verbas indenizatóriasMetade da indenização a ser paga pelas empresas (R$ 200 milhões) decorre da prática de dumping social, e deverá ser repartida em partes iguais ao Fundo Estatal de Direitos Difusos e ao Fundo Nacional de Promoção dos Direitos Difusos e Coletivos.
Os outros R$ 200 milhões, destinados à reparação do dano moral coletivo, devem ser revertidos em favor da comunidade local de Tatuí, “podendo os recursos ser aplicados em políticas de inserção de pessoas com deficiência”. Se decorridos cinco anos sem a aplicação dos recursos, o montante será destinado ao Conservatório de Tatuí.
A Ford e a Avape podem recorrer da sentença no Tribunal Regional do Trabalho em Campinas (SP).